Não deu para não escrever. Crises pandêmicas, irmã de autista, mãe, professora e filha!!!

Dizer que a morte já não tentou me levar seria mentira. Dizer que não tive experiências espirituais que testificam ainda mais a minha fé também. Mas assim como a vida tem seus altos, passa pelos baixos que são os vales. E como filha, como mãe, como irmã, como professora e como Ana, simplesmente uma mulher de 27 anos, me vejo com pensamentos tão aflorados ultimamente que quero expô-los porque talvez ajude alguém e amenize um pouco da angústia “pandêmica” e futurística.

Muitos sabem (ou não) sobre minha infância/adolescência. Não sei porquê, mas resolvi falar sobre ser a irmã de um autista grau severo.

Para quem não sabe, não é doença, não é algo que tenha cura. É transtorno mental e emocional, e como todo transtorno, há apenas tratamentos paliativos e evolutivos. Um passo de cada vez, um dia após o outro. E uma dose diária de coragem e paciência.

Acho que não tem porque pintar esse mundo de cor de rosa ou sequer dizer que ai é tudo lindo, ai como é agradável e especial. Não, chega um ponto que você começa a enxergar as coisas de fora, a perceber sentimentos e a falar tão raramente sobre eles, e quando há um acúmulo disso em anos, a explosão é caótica e acumula-se a outros fatores reais, também.

Eu sempre me senti sozinha, excluída e carente de atenção afetiva dos meus pais, eu tenho sim plena consciência que foi necessário, que não tinha outra opção e que filho é filho e ponto final! E por um filho vamos até o fim, lutamos até o último suspiro. Mas dizer que anulei isso, que superei e que não me deixou sequelas seria mentir. A cura é diária, a evolução também.

Na adolescência tive fortes crises de ansiedade, crises depressivas. Aos nove anos, sentia o peso da responsabilidade de ser “mãe” de um autista, porque amadureci muito rápido mentalmente e apesar de nunca ter compartilhado desse sentimento com meus pais, era o que sentia. Sentia como se não tivesse chão ou não tivesse saída para aquela situação. Eu não conseguia me sentir leve, acho que era como andar em uma corda bamba no ar, constantemente. Sensação de impotência, e foi assim durante anos, sem saída, mas remando... Sempre contra a maré. Eu não quero mascarar nada aqui, portanto, você que lê, só peço que não me julgue. Porque quando se tem um autista grau SEVERO em casa, todos ficam desnorteados. Não há políticas públicas que ajudem, não há qualidade de vida. Ainda quando se consegue controlar as crises, ok, mas na fase da adolescência do autista, a força fica extrema e o medo cada dia mais frequente: seja dele se auto mutilar, machucar meus pais (como sempre fez), me machucar, ou perder a todos de uma só vez. Você passa a questionar a existência, o porquê disso, a não escolha, sonha com ele andando com você, dividindo sonhos, sendo irmão e tendo ciúmes de namorados, parceiros de amizade infinita. E dói!!!! Como dói não poder ter dividido isso, não ter vivenciado situações assim. Só de dor, eu só consigo me lembrar de sentir dor e medo. É um anjo de luz sim, não tem noção do que faz, mas isso dói, e dói em tantas proporções inexplicáveis. Não passa, ao longo do tempo “congela-se”, mas os sentimentos recalcados se afloram a um ponto de pensar que sua vida vai ser totalmente voltada pra uma pessoa e que o social, que o emocional não vai durar muito. Era o que sentia, muitas vezes sufocada. Porque além disso, a situação financeira sempre foi difícil, peguei certo “ranço” da cidade que moramos pela falta de oportunidade, pelas pessoas esnobes e poucos empáticas que conheci lá.

E então me mudei para fazer faculdade, para ter algum rumo na vida. Como ouço do meu próprio pai ou de outras pessoas que me julgam, “os abandonei” nesse período para viver a minha vida. E eis a questão: devo mesmo sentir essa culpa? Devo mesmo sentir remorso por desfrutar momentaneamente de “paz” e liberdade (leia-se buscar alternativas e preocupações constantes, porque poderia estar do outro lado do mundo, os sentimentos me acompanhavam)? E falo novamente, aqui é sentimento enraizado, real. Estou despindo em palavras o que minha alma acumulou em anos. E tive filhos, meu irmão foi internado. Por fim, hoje, meus pais, eu e meus filhos estamos totalmente próximos, morando pertinho. E óbvio que se eu fosse a mãe do Luís, teria feito exatamente igual, mas...

Vieram os pensamentos assombrosos: e quando meus pais não estiverem mais aqui? Eu não consigo dar conta dele se sair da clínica, em três pessoas não conseguíamos, literalmente uma época vivemos aprisionados, como seria encarar tudo isso sozinha? Com uma idade superior? Como seria? Como talvez será? E essas dúvidas vieram e estão me sondando, e tenho certeza que muitos irmãos pensam o mesmo, mas não expressam. E é ruim, é errado não expressar. Porque quando há exposição, há lógica, há raciocínio sobre aquilo. O “encarar” que sua vida vai novamente girar em torno de outra pessoa, que você não tem outra escolha, é esquisito. É frustrante, é impotente. E não sei se é tudo isso mesclado pelos assombros do passado, ou pela solidão extrema que nessa fase, que nesse ano veio. A intensidade do que sinto é aflorada à medida que penso, à medida que acordo. E sim, a maioria dos dias eu sorrio, eu luto pelos meus ideais, sonhos, perspectivas! E meu irmão... Está tão lindo, tão bem! Eu nunca o vi assim em tanto tempo. E só me resta acreditar e depositar a minha confiança em Deus, que é quem supre toda dor, toda falha, alivia o fardo mais pesado que é lidar consigo e o que se sente, o que vivencia, e com a própria “solidão”. E acreditar! Acreditar num mundo melhor, em pessoas que amem, pessoas que procurem a igualdade social. Porque seja autista, seja dependente químico, seja transtorno mental, seja qualquer um que é totalmente dependente de alguém... É um problema de perspectiva social, que deveria sim ser tratado e enxergado com outros olhos. Sem preconceitos, sem tabus. Eu ainda sonho e sempre sonharei com essa “sociedade ideal”. 

Comentários

  1. Você não precisa se culpar ou por um peso a mais sobre seus ombros, não é culpa sua, nem de seus pais, nem de seu irmão dele ter esse problema. Não adianta ficar jogando essa culpa e responsabilidade um para o outro. Ajudem-se mutuamente, e quando seus pais partirem, se for uma residência fixa, permanente, ele não sairá desta clínica por que eles não estarão mais presentes, pois é fixa e se for pago pelo estado,este se encarrega com todo o custo.
    Você foi submetida a uma pressão e responsabilidade muito grande com pouca idade, precisou crescer muito rapidamente por conta de seu irmão. Não culpe-se, tens uma vida própria para cuidar e também dos seus filhos, você merece ser feliz, e esquecer os problemas de vez em quando. Os filhos são feitos para o mundo, não para guardarmos em um pote e deixa-lo trancado em um armário eternamente. Seu irmão ficará bem, e esta em um lugar preparado para suas necessidades, todos ali estão para ajudar pessoas como ele, não se preocupe, e você sempre poderá visitá-lo na clínica.

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